Foto by Cadu de Castro
Meu dia tinha sido muito difícil. A queda das ações foi significativa e eu teria de pensar em estratégias emergenciais para recuperar as perdas. A tarde foi de reuniões e cobranças, muitas cobranças. A noite fui obrigado a assistir a palestra de um sociólogo sem senso de realidade, criticando o neoliberalismo e exaltando os sistemas econômicos de esquerda, bem como discorrendo sobre medidas emergenciais para alcançarmos justiça social. Segundo ele, a violência e criminalidade são frutos das injustiças sociais e não de caráteres degenerados.
E a meritocracia onde fica? Sim, porque acordo cedo, trabalho e pago os meus impostos, ou seja, cumpro com minhas obrigações de cidadão. O que posso fazer pelos mais pobres senão lamentar? Cada um ocupa o lugar que merece, cada qual colhe os frutos do seu esforço. Enfim, ouvir sociólogos e historiadores definitivamente é um saco! São os porta vozes de uma esquerda que não evoluiu. Desde Marx batem na mesma tecla, apesar de que desde sempre me recusei a ler Marx. Porque deveria ler alguém de quem discordo veementemente?
Cheguei em casa tarde, mas precisando me desintoxicar das ideias da esquerda caviar, que deturpam a realidade e evocam loucas utopias e, para isso, nada melhor do que consumir, ainda que seja comida. Liguei para o fast food e pedi dois hambúrgueres com muito queijo, bacon, maionese escorrendo pelos cantos e muito catchup. Para beber um litro de Coca-cola, um sundae e cheese cake de sobremesa. Perfeito!
Comi vorazmente e, ainda que metade de tudo aquilo tivesse me saciado, precisava consumir, consumir em excesso. Farto deitei-me à cama. Cansaço, preocupações, aborrecimentos ideológicos, tudo misturado em minha mente, e uma pitada de fastio. Mesmo em meio a esse turbilhão de pensamentos e sensações, adormeci.
Recordo-me do início do sonho, quando encontrava-me em um avião de campanha e soldados de fardas vermelhas prendiam um paraquedas em mim. Eu olhava para baixo e via o mar azul turquesa que circundava uma ilha. Clamava para que me soltassem, tinha medo, não queria saltar, não gostava de nada que fosse desconhecido. Supliquei para que me libertassem e me levassem de volta para casa. Um deles, provavelmente um oficial, mandou que me calasse, que teria de cumprir minha pena.
O piloto falou ao rádio que estávamos na latitude de 21° 30' 0' norte e longitude de 80° 0' 0" oeste, e que era o local do meu degredo. Tentei escapar, mas seguravam-me com muita força. Abriram a porta do avião e empurraram-me para fora. Gritei um grito de horror, de pânico, de desespero, e caí. Na queda olhei para o avião, vermelho como as fardas dos soldados, que aos poucos tornou-se um ponto no céu e desapareceu. Senti um tranco forte no tronco, o paraquedas abriu, automaticamente abriu, sem eu acioná-lo.
Segurei nas alças que manobram o velame, mas o paraquedas seguia como se dirigido à distância, eu não tinha controle. A ilha crescia aos meus pés, até que pousei. Estava frio, pálido, mas suspirei aliviado, estava vivo. Soltei-me das alças e amarras e olhei ao meu redor. Estava em uma cidade, uma área urbana com prédios antigos, mas bem conservados. Pessoas começaram a se aglomerar a minha volta, alguns negros outros brancos, eu estava assustado, não os conhecia, não queria conhecê-los. Queria retornar a minha casa, não queria o degredo a que fui condenado sem saber o porquê. Estava angustiado e a gente ao meu redor se aglomerava mais e mais, como se vissem em mim um alienígena. Todos de aspecto pobre. As roupas démodé não tinham bom corte nem grifes. Tentavam demonstrar sua terrível solidariedade, o que me atormentou ainda mais.
Bradei para me deixarem em paz. Não queria ninguém ao meu redor. Usei as mãos espalmadas e tapei meus ouvidos, não queria ouvir palavras de solidariedade. Assim calei as vozes das pessoas medonhamente solidárias! Comecei a caminhar. Perambulei pela cidade e a me horrorizar com aquele povo que parecia uma horda de zumbis sorridentes e festivos. Riam e bailavam ao som da salsa, da rumba e do conga. Senti náuseas.
Continuei a andar e por todos os lados os via, pobres e horrendamente felizes. Desesperei-me com esse contrassenso. Como seriam felizes sendo pobres? Como seriam felizes se não possuíam? Aproximaram-se de mim. Foi então que aterrorizei-me. Os descobri educados. Disseram-me que na ilha, tenebrosamente, priorizavam a educação enquanto careciam de alguns gêneros básicos, como sabonete. Eram repugnantemente satisfeitos por terem educação que formava seres pensantes e cidadãos críticos, ainda que eventualmente tivessem que disputar sabonetes. Não compreendia essa lógica e isso me afligia.
Fugi deles! Escondi-me num beco. Porém havia outros, muitos. Aproximaram-se de mim a falar. Eu os rejeitava, mas falavam. Falavam coisas que eu não queria ouvir. Falavam de sua execrável alegria. Falavam de sua hedionda paz. Falavam da pavorosa segurança que sentiam por não conhecerem crime e violência. Falavam de sua satisfação ainda que, por vezes, faltasse a ales pasta de dentes. Abominei-os. Corri. Saí do beco.
Fui dar numa praça. Achei que se me misturasse a eles talvez conseguisse escapar de suas tenebrosas conversas e intrépida solidariedade. Com a angústia crescente caminhava entre o povo. Identificaram-me. Certamente pela aparência e pela roupa, pois eu não me parecia nem um pouco com eles. Diferenças que apavoravam-me. Sorrindo e esboçando simpatia horripilante perguntavam-me se precisava de ajuda. Eu dizia que não, que queria paz, que queria ser incógnito. Mas continuavam a sorrir e a praticar a arrepiante solidariedade.
Gritei que não queria ajuda. Que não queria contato com pessoas que viviam num mundo vintage, com carros da década de 60 e que ainda assim expressavam prosperidade. Todos riam, riam muito, alguns chegavam a gargalhar. Diziam que tinham saúde pública humanizada. Eu bradava: "mas e os carros?" Diziam que o carro pouco importava, confessavam que a grande maioria nem carro tinha. Nem carro, nem celular, nem computador, mas agiam como se fossem prósperos. Não sei dizer se sentia-me mais indignado ou escandalizado com tamanha alienação. Alienados! Vociferei: "alienados!" E eles riam ainda mais, quase todos gargalhavam.
Em meio as suas gargalhadas, esquivei-me, livrei-me deles. Caminhei ligeiro por uma rua escura e deserta. Enfim não via ninguém! Estava aturdido pelas mentalidades, valores, costumes e hedionda lucidez daquela gente. Como podiam pensar assim? Como podiam viver assim? Então deparei-me com um assustador outdoor onde lia-se "Economize! Consuma somente o que precisar". Foi a gota d'água. Não pude mais. Que mundo dantesco é este onde se faz propaganda contra o consumo? Tenho de ir embora desta ilha infernal governado por horrendos tiranos que dão ao povo educação, saúde e moradia. Déspotas nauseantes que instituíram uma constituição por plebiscito. Tenho de voltar para o meu mundo. A clarividência é cruenta, implacável, brutal e eu não podia conviver com ela.
Segui atordoado, flagelado pela sórdida lucidez que aquele lugar me impingia. Enxerguei outro outdoor que me lacerou ainda mais. Dizia: "Há três milhões de crianças vivendo nas ruas em todo o mundo, nenhuma delas na Ilha". Eu repelia e repudiava a consciência que tentava se apoderar de mim. Já não suportava mais. A angústia transformou-se em asfixia, já não podia mais respirar, ainda assim tentei correr. Cai. Era a luz, o resplendor, a claridade, a nitidez que me sufocavam. A lucidez trucidava-me, dizimava tudo o que eu era. Parei de respirar, meus olhos cerraram. Morri.
De repente despertei, respirava entrecortado, suava abundantemente. Num sobressalto apoiei-me sobre minhas mãos, sentei-me. Ainda no escuro, percebi a luz do relógio de cabeceira, estava em meu quarto. Puxei o ar e respirei aliviado. Suspirei. Levantei-me lentamente, acendi a luz do quarto para certificar-me onde estava. Era o meu quarto. Abri a janela, deparei-me com a grade de proteção. Olhei mais ao longe e vi a cerca elétrica que circunda o muro de minha casa. Ouvi a sirene de um carro de polícia. Sorri e suspirei novamente. Meu celular estava sobre o criado-mudo. Caminhei até o escritório ao lado do meu quarto e chequei o computador e o notebook. Desci até a cozinha para beber um copo d'água, estava com a garganta seca. Vi a TV LCD, o home teather, tudo em seu lugar. Perfeito.
Espalhei-me no sofá. Respirei fundo, mais uma vez tomado pela sensação de alívio. Tudo não passou de um sonho Kafkiano, um pesadelo. Certamente foi a má influência do sociólogo e seus discursos sobre justiça social. Contudo, as coisas estavam em seu lugar. Ouvi o som da sirene da polícia aumentar, cães latirem ao longe. Fui tomado por uma sublime sensação de segurança. Afinal, estava no meu mundo. O degredo não passou de um sonho dantesco.
Cadu de Castro
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