segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

A CASA DOS MEUS SONHOS



Ontem mesmo a vi novamente. Sentada naquele morrinho de terra, dura, ressecada, fiquei contemplando-a. Alfredo dizia sempre que iria consertar o alto relevo da porta de entrada, porém, continuava quebrado. Bem me lembro daquela falha, feita numa hora de raiva, em que António a trancara e mostrava a chave através do vidro da janela, enquanto gritava que agora aquela sala e todos os seus pertences eram dele, ali ele era o rei, só ele mandava e para entrar precisávamos pagar alguma coisa, dessas coisas que só as crianças entendem e dão valor: uma bolinha de gude, uma pedra diferente, uma roda para o carrinho que ele António estava fazendo e Alfredo louco de raiva, a esmurrar a porta, a gritar que abrisse, senão ele Alfredo, pegaria uma pedra, a maior que encontrasse e quebraria a porta, mas que entrar entraria e não pagava nada, porque a casa era dele.

É pena que o pessegueiro ali no fundo já não seja o mesmo. Seus galhos parecem tristes, com poucas folhas e não estamos no inverno. Terá sentido falta de sol, deste sol que me fez transpirar tanto na subida para vê-la e me deixou com os pés ardendo e cansados, pés de idosa que já não anda tanto e há muito não correm. Esta flor que tenho ainda entre os dedos, que encontrei caída na calçada ao lado da casa, traz com seu perfume uma saudade imensa, foi daquela árvore que plantei. Aquele galho caído sobre o telhado deve ter sido quebrado pela tempestade de sábado.

Alfredo dizia, quando passávamos por lá, que um dia voltaríamos e iríamos fazer tantas coisas, como concertar aquela cerca com a roseira trepadeira de mamãe, de cachos de rosas tão miúdas e brancas, que mais pareciam flocos de algodão e também o portãozinho dos fundos que percebíamos não mais fechar direito.

Amanhã, se minhas pernas não estiverem tão inchadas, voltarei lá para ver se aquela tabuleta com letras grandes e pretas, que tem me tirado o sono, que tem me feito ficar ansiosa e apreensiva, ainda está lá. A tabuleta que não sei se é amiga ou inimiga, se vai me ajudar a recuperá-la ou fazer com que eu a perca para sempre; mas luto em pensamento para que isso não aconteça, porque sinto a velhice, sinto que já não tenho muito tempo, pois noto que minhas costas já não se curvam como antes, quando tirava aqueles matinhos do canteiro que Alfredo plantava e replantava.

A espera, sempre a espera... Se o dinheiro não der e outros a comprarem, se não puder mais tê-la, nem assim deixarei de ir lá. Sentarei nesse morrinho donde eu possa ver a velha mangueira e relembrar Beatriz encarrapichada num galho, comendo manga verde com sal, rindo e mostrando a língua quando eu dizia que fazia mal e ia contar à mamãe Recordarei também as nossas brincadeiras, a boneca que ficou sem um olho por uma “operação” de António, as brigas dos meninos para saber quem seria o “chefe”, as corridas em volta da casa que quase sempre acabava com uns safanões de mamãe pelas roupas rasgadas.

Tenho sempre a impressão que todos os meus fantasmas queridos estão lá. Não é possível que mamãe tenha abandonado aquelas salas que ela amava tanto, bordando toalhinhas para enfeitar os moveis já velhos, mas bem cuidados. Não creio também que papai deixasse sua cadeira predileta na varanda, a papear com os amigos sobre política, sempre com um livro ou jornal no colo, comentando os últimos acontecimentos, a querer convencer a todos das grandes reformas sociais que deveriam ser feitas, reformas utópicas que só cabiam em seu coração já tão machucado pelas decepções sofridas. E a querida tia Emília, a andar com seus passinhos miúdos pelo pátio, sempre com seu cãozinho ao lado, a criticar e a resmungar quando as coisas não andavam em ordem. 

Sensação estranha de tempo parado. Sim, todos eles devem estar lá. Mesmo Alfredo que foi para tão longe e seu corpo esguio perdido numa terra estranha, talvez sob uma árvore, pois seria injusto não estar sob esta árvore, justo ele que as amava tanto, sinto que está lá.

Esta casa, a nossa querida casa, não era feita apenas de tijolos, cimento e areia; ela tinha o nosso amor e gravou tudo, guardou em cada canto, em cada janela, em suas paredes nossas vozes, prantos e risos, nossas brincadeiras de crianças, as apreensões dos adultos e seus sofrimentos (adulto é tão sério para as coisas da vida), que não posso perdê-la, tenho que voltar, pois preciso unir as duas partes do meu ser, porque não consigo viver assim separada, já que uma parte ficou lá!

                                              Daici Maria d'Andretta
                                     (conto – escrito por volta de 1969) 

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